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O Pai - As aventuras de Scarleth Werewolf

Conto: O Pai
Coleção: As Aventuras de Scarleth Werewolf


Era uma sala de reunião. Uma mesa muito comprida, as paredes brancas, a luz fria. Estávamos quase todos lá, velhos, cansados. Até o Jorginho estava lá. Jorginho só no nome, pois era o mais velho de todos, muito mais idoso que todo mundo.
Fazia tempo que não nos reuníamos, a irmandade se acabou e a força também.
Eu presidia a reunião, mas ela ainda não tinha começado, estávamos esperando os últimos chegarem... e foi durante esse tempo que fui lembrando como nos conhecemos e porque estávamos nos reunindo ali.

Era uma tarde de sol bem quente o dia que conheci o Jorginho. Ele era dono do Mercado do Jorginho, um mercadinho de bairro de tamanho médio. Trabalhava no balcão de atendimento ao consumidor e supervisionada os outros funcionários. Ele tinha uns 45 anos na época, mas os cabelos brancos já eram abundantes.
Eu estava na rua do mercado, correndo, desesperada. Foi a primeira vez que aconteceu, eu não sabia o que era e por isso meu desespero. Corria, mas não tinha destino, apenas corria como se fosse possível deixar tudo pra trás, desfazer a realidade, igual quando a gente acorda de um sonho.
Não sei como ele soube, talvez por causa dos cachorros do estacionamento, que não eram bem cachorros e começaram a latir para mim. Ele saiu do mercado, e me parou. Jorginho usava o colar com aquele símbolo azul, e ele brilhava muito.
Ele me acalmou, me fez entrar, e me levou para uma salinha nos fundos. Sua esposa e seus filhos estavam lá, mais alguns funcionários. Todos usavam um colar com o mesmo símbolo.
Entrei, não entendia o que estava acontecendo, mas estava tão perdida que aquela reunião de pessoas desconhecidas fazia mais sentido do que o que acabara de me acontecer. Eu havia virado um cão.
Um cofre foi aberto, tiraram um colar idêntico e foi colocado em volta do meu pescoço. Na hora, voltei a ser pessoa. Todos me felicitaram, com abraços e apertos de mão, e então Jorginho, que parecia o líder daquelas pessoas, me disse “Parabéns, você é um lobisomen”.

Uma coisa que não mudou em Jorginho foram os cabelos brancos, desde aquela época só aumentaram. Agora sua cabeça foi praticamente toda tomada pelos fios dourados. O que mudou, no entanto, é que ele não usava mais o colar, e também não era mais o chefe do grupo.
Quem se senta agora na ponta da mesa sou eu, e também fui eu quem o convocou. Não tenho essa posição por que quero, apenas porque sobrou para mim depois que Jorginho foi embora sem dar explicação. O lugar ficou muito tempo vago, ninguém se atrevia a tomar seu lugar, nem eu. Nossa organização desmoronou, o poder subiu a cabeça de muitos de nós, sem um guia para nos liderar a coisa foi tomando proporções maiores, onde ninguém se respeitava.
Também cheguei a abandonar a matilha, achava que era a coisa certa, afinal foi o que Jorginho fez. Quantas noites me debati com o fato de não saber porque ele nos abandonou, e que o motivo deveria estar na nossa cara, porém me sentia idiota por não enxergar.
Até o fatídico dia que entendi que eu tínhamos que nos unir, que éramos muito mais do que a vontade de um líder, e que se ninguém se dispunha a ficar no lugar que Jorginho outrora ocupou, eu tinha a responsabilidade moral de encarar esse desafio.

Era uma manhã de inverno com sereno. Não nos reuníamos mais naquela época, o mercadinho estava fechado e nosso ponto de encontro era um terreno baldio na cidade. Isso dizia muita coisa sobre nós, antes organizados num comércio, agora jogados num lugar que não servia para nada, assim como nossa matilha.
Fomos todos para lá, mesmo sem uma convocação formal. Era o certo a fazer, e pelo menos isso nós nunca esquecemos. Saiu na capa do jornal: um jovem apareceu morto, decapitado, com marcas de garras pelo corpo, como se tivesse sido atacado por uma besta.
Nós sabíamos o que eram as marcas, e que não fora um assassinato, e sim um suicídio. Nos sentimos culpados por não termos acolhido o garoto. A mudança é difícil, confusa, e não havia mais uma organização ou qualquer pessoa disposta a guiar o novato pela transformação.
Todos foram para o mesmo local por luto, por medo, ao mesmo tempo para atacar uns aos outros, culpar alguém pela tragédia, e no fundo esperando que alguém nos culpasse, que isso fosse um tranco que fizesse esse motor parado finalmente pegar.
Ele morreu sem ao menos receber uma explicação, ninguém se deu ao trabalho de contar o que acontecia e ninguém achou que ele tivesse valor o suficiente para ganhar o colar azul. E isso era o que mais doía: todas essas atitudes na verdade não diziam nada sobre o garoto, e sim sobre nós.
Foi então que tomei as rédeas, depois de tantos anos sem ninguém sentado àquela cadeira. Toda e qualquer matilha tem um líder, e por isso mesmo sem um líder não éramos mais uma matilha, éramos nada.

Nenhuma mudança é simples, e demorou para que eu fosse aceita. Nunca tive a intenção de substituir Jorginho pelo que ele foi e representou para todos nós. E foi com essas palavras que iniciei a reunião. Estavam todos surpresos e alegres de ver nosso antigo líder ali, e desconfortável pelo fato de sentar numa cadeira de convidado e não de líder. Quem mais se sentia desconfortável era eu, mas nunca deixaria isso abalar o que havíamos conquistado até agora.
Jorginho e sua família foram chamados até essa sala, não como desertores, não como membros da matilha. E sim para ouvirem uma oferta. Os membros antigos estavam todos lá, muitos rostinhos novos também, principalmente de jovens que tiveram a transformação recentemente e, graças a nova força da matilha, não tiveram o mesmo destino do garoto que estampou os jornais anos atrás.
A oferta, na verdade, eram duas. A primeira, oferecemos seus colares azuis de volta. São com esses artefatos misteriosos que conseguimos nos comunicar, nos reconhecer e nos ajudar. Nenhum lobo pode ter uma vida completa sem ele, é muito mais do que um símbolo da matilha, é um símbolo da própria raça.
A segunda oferta foi a palavra. Ninguém pode falar sem que o líder permita, e com tanto tempo sem um líder quase perdemos a nossa comunicação. A palavra foi oferecida a Jorginho e sua família. Jorginho se levantou e a segunda oferta também foi aceita. O pai pródigo a casa retornou.
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Baseado num sonho que tive há algum tempo.

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